O Rio de Janeiro, um dos lugares mais
famosos do mundo, é a parte mais visível do poder do crime organizado no
Brasil, que ocupa territórios, obriga moradores a usar serviços ofertados pelas
quadrilhas e ameaça de morte quem não seguir as regras das facções. Quando
agentes da lei tentam entrar nessas áreas — seja sob amparo da Justiça, seja
por conta própria —, a violência ganha tons ainda mais fortes.
A megaoperação policial que culminou na
morte de ao menos 121 pessoas, incluindo quatro policiais, na última
terça-feira, estampou manchetes de jornais do mundo inteiro e deixou o
governador do estado, Cláudio Castro (PL), na mira dos holofotes para explicar
o motivo de tantos cadáveres em uma ação que, segundo as próprias autoridades
policiais, foi planejada com meses de antecedência.
Apesar dos números trágicos — a operação
foi a mais letal da história policial brasileira, superando os 111 mortos do
Massacre do Carandiru, em São Paulo, em 1992 —, governadores da direita
correram para prestar solidariedade ao colega fluminense, no sentido de
reforçar a tese de que o cerco aos bandidos do Complexo da Penha (Zona Norte)
foi "um sucesso", segundo definição do próprio Castro.
Até agora, porém, não foi possível
confirmar a identidade de todos os mortos e, consequentemente, a informação do
governador de que eram, exceto os policiais que morreram em serviço,
"todos bandidos". As imagens da operação correram o mundo por meio de
sites e jornais que repercutiram a violência extrema de um dia inteiro de
confrontos, sintetizada pelos mais de 60 corpos enfileirados em uma praça da
comunidade.
O estado do Rio, porém, não está
incluído na lista dos mais violentos do país. Ocupa, segundo dados do Anuário
Brasileiro de Segurança Pública 2025, a modesta 15ª posição no ranking das
unidades da Federação em número de mortes violentas intencionais (MVI) — que
inclui homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e
mortes decorrentes de intervenção policial.
O líder dessa estatística é o Amapá,
seguido da Bahia. Pela extensão territorial e tamanho da população, o estado
governado por Jerônimo Rodrigues, do PT, vai virar vidraça na guerra política
entre direita e esquerda no debate sobre segurança pública, uma das principais
preocupações do eleitor que vai às urnas em 2026. Mesmo tendo reduzido a taxa
de MVI em mais de 8%, a Bahia registrou, só no ano passado, 6 mil mortes
violentas — muito acima dos números de Rio de Janeiro e São Paulo (3,8 mil e
3,7 mil, respectivamente), que têm populações bem superiores.
Quando se olha para os números da
violência policial, a Bahia ocupa a liderança em números absolutos. De cada
quatro mortes violentas, uma foi provocada por agentes do estado (25%), contra
21% em São Paulo e 18% no Rio. Foram 1.556 pessoas mortas, em 2024, em ações
envolvendo forças policiais na Bahia, quase o dobro do registrado em São Paulo
(813) e no Rio (703).
A Bahia também tem cinco das 10 cidades
mais violentas do país, de acordo com o anuário. A liderança é da cearense
Maranguape, com quase 80 mortes violentas por 100 mil habitantes. Na sequência,
três municípios baianos: Jequié (77 por mil), Juazeiro (76) e Camaçari (74).
Completam a lista Simões Filho, no 7º lugar, e Feira de Santana, em 10º.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado
(União Brasil), um dos primeiros nomes a se lançar pré-candidato à Presidência,
não escondeu que a Bahia está no mapa da campanha eleitoral do ano que vem e
vai ser usada contra o candidato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva — que
pode ser o próprio presidente, em reeleição. Caiado foi um dos quatro
governadores — além da vice-governadora do DF, Celina Leão (Progressistas) —
que foram ao Rio de Janeiro para prestar solidariedade a Castro e anunciar o
chamado "Consórcio da Paz". Outro aliado, o governador de São Paulo,
Tarcísio de Freitas (Republicanos), participou por videoconferência. Ele foi o
primeiro a verbalizar que, na Bahia, pode estar o calcanhar de Aquiles do PT
quando o assunto é combate ao crime organizado.
"O governador da Bahia foi
secretário de Rui Costa, o poderoso ministro da Casa Civil. O ministro (da
Justiça, Ricardo) Lewandowski é do governo do PT. Lula foi o mais votado na
Bahia. E é onde mais se mata no Brasil, o maior percentual de mortes por 100
mil habitantes. Ali há uma verdadeira carnificina. Por que eles não implantaram
esse modelo (de segurança integrada) no seu próprio estado?", provocou
Caiado, após a reunião com Cláudio Castro.
Facções criminosas
Apesar dos números altos, a Bahia não
está descolada do restante da Região Nordeste. Nos últimos anos, o anuário
aponta que "a violência letal se manifesta de formas bastante distintas
entre estados e regiões". Enquanto a Região Sudeste registrou, no ano
passado, a menor taxa de sua série histórica — 13,3 mortes por 100 mil
habitantes —, o Nordeste atingiu 33,8 mortes por 100 mil — 155% acima da média
do Sudeste. A média Brasil está em 14%. No último ano, os estados com mais
altas taxas de mortalidade foram Amapá (45,1 por 100 mil), Bahia (40,6 por 100
mil), Ceará (37,5 por 100 mil), Pernambuco (36,2 por 100 mil) e Alagoas (35,4
por 100 mil).
Estudos sobre a presença das
organizações criminosas nos presídios do Brasil mostram que a Bahia é o estado
com o maior número de facções atuantes. Dos 88 grupos criminosos que atuam no
Brasil, de acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais
(Senappen), 21 agem na Bahia. As maiores facções no estado são o Comando
Vermelho (CV), originário do Rio de Janeiro, e o Bonde do Maluco (BDM), criação
baiana que atua em praticamente todo o estado. Ainda há uma dissidência do BDM,
conhecida como Honda 34, com forte presença em Juazeiro.
Em Salvador, a guerra por territórios é
acirrada entre o CV e o BDM. Bairros como Tancredo Neves, Vila Verde e Lobato,
por exemplo, são disputados pelas duas facções, que travam confrontos quase
diários.
O governador Jerônimo Rodrigues não
contesta os números, mas ressalva que os dados sobre violência no estado vêm
caindo. "Estamos com indicadores de segurança pública bastante melhorados
em relação a 2022, 2023 e 2024. Mas o que interessa é que nós estamos com foco.
O nosso foco é garantir uma Bahia de paz com enfrentamento cotidiano do crime
organizado. Nós temos que cuidar para que o crime organizado não tenha espaço
na Bahia. E não vai ter. Não tem vez", declarou ele, em uma viagem ao
interior do estado, na semana passada.
Sobre a Operação Contenção no Rio de
Janeiro, Rodrigues criticou a letalidade policial e defendeu o Estado de
Direito. Em uma entrevista para a TV Bahia, na quarta-feira, declarou:
"Para mim, bandido bom é bandido preso, entregue à Justiça e punido conforme
a lei".
Aposta na política do confronto
A segurança pública se consolidou como
uma das principais bandeiras dos governadores de direita no Brasil. O discurso
do enfrentamento, sustentado pela promessa de "retomar o controle"
das ruas e endurecer contra o crime, tem rendido dividendos eleitorais, mas
também gerado efeitos colaterais. Dados recentes mostram que os estados que
mais investem na política de confronto convivem com altos índices de letalidade
policial e com o fortalecimento das facções criminosas.
Em São Paulo, governado por Tarcísio de
Freitas (Republicanos), o índice de Mortes Decorrentes de Intervenção Policial
(MDIP) chegou a 21,7% das Mortes Violentas Intencionais (MVI) em 2024, segundo
o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estado concentra 31,4% dos roubos e
furtos de celulares do país, com quadrilhas ligadas ao PCC atuando na
receptação e exportação dos aparelhos. Apesar do uso de câmeras corporais e
drones, a letalidade se mantém alta.
No Rio de Janeiro, a violência segue em
níveis alarmantes. Seis anos após a eleição de Wilson Witzel, o estado ainda é
palco de chacinas, confrontos entre facções e milícias e altos gastos com
segurança, 15% do orçamento estadual, mais do que saúde e educação. A recente
operação que deixou mais de 120 mortos, sob o comando de Cláudio Castro (PL),
reacendeu o debate sobre a eficácia do modelo. "Nenhuma operação com mais
de 100 mortos pode ser considerada um sucesso", avalia o especialista em
segurança pública Jaime Fusco. "Ou há integração entre os agentes do
Estado e coordenação política, ou a situação sairá completamente de
controle."
O STF, na ADPF 635, fixou parâmetros
para reduzir a letalidade policial. Quando esses limites são desrespeitados, há
risco de ruptura com o Estado de Direito", explica o advogado e
especialista em Direito Criminal Caio de Souza Galvão, do escritório Galvão
& Silva Advocacia.
Ele pondera que, embora o poderio das
facções imponha reação firme do Estado, o uso da força precisa seguir
planejamento técnico e respeito aos protocolos legais. "O número de
mortos, o uso de armas de guerra e as dificuldades de acesso de ambulâncias e
do IML exigem verificação detalhada. O que vai definir se houve excesso será o
cumprimento da ADPF 635 e as medidas para proteger civis e agentes",
afirma.
Em Minas Gerais, sob o comando de Romeu
Zema (Novo), o endurecimento também é a tônica. O estado resistiu à expansão
das câmeras corporais, mas registrou aumento de 58,6% nas apreensões de cocaína
em 2024. Com o terceiro maior contingente policial do país, Minas carece de
políticas de prevenção e integração. Já em Goiás, governado por Ronaldo Caiado
(União Brasil), a taxa de letalidade policial atingiu 27% das mortes violentas
intencionais. Embora o número de adolescentes internados tenha caído, os índices
de intervenção letal continuam entre os mais altos do país.
Para o secretário nacional de Segurança
Pública, Mário Sarrubbo, o caminho para romper o ciclo de violência passa pela
integração institucional. "A PEC da Segurança Pública cria um sistema
único de cooperação, mas não muda uma vírgula na autonomia de estados e
municípios", aponta. A proposta pretende coordenar políticas entre União,
estados e municípios, fortalecendo o combate às facções e o investimento em
inteligência.
O senador Izalci Lucas (PL-DF) também
defende a união de esforços, mas alerta para riscos de centralização. "O
crime está fora de controle em vários estados. É preciso integração, mas com
respeito à autonomia. Só com educação e emprego vamos tirar jovens do
tráfico."
Para Galvão, a cooperação entre os entes
federativos é essencial. "O crime organizado é interestadual e
transnacional. É preciso compartilhar inteligência, realizar operações
conjuntas e fortalecer fronteiras. Mas também investir em prevenção social e
reintegração. Segurança se constrói com coordenação, não apenas com
confronto", conclui.
Do Correio Braziliense


